Veganismo e Etnocentrismo - Parte I
Cães criados por sua carne, na China: nem melhor, nem pior. Igualmente bárbaro.Não é incomum nos depararmos com esta acusação, quando defendemos o veganismo: afirmam que comer carne é uma questão cultural, e que tentar mudá-la não é apenas autoritário, mas também etnocêntrico (ou seja, a imposição da própria cultura sobre as demais). Hoje gostaria de desmistificar essa idéia.
O buraco negro do relativismo
Essa questão incorre, inevitavelmente, na armadilha do relativismo cultural, o qual afirma que todas as culturas são relativas e se equivalem.Respeitar as diferenças culturais não significa sacralizá-las nem considerá-las imutáveis - o que é uma interpretação conservadora que não combina com o discurso, em geral progressista, dos que apelam para o relativismo cultural como princípio, e não ferramenta de análise. O que os relativistas não entendem é que equivalência não exclui a incompletude. Todas as culturas são incompletas. Apontar tais incompletudes não é manifestação hegemonista ou preconceituosa. O relativismo cultural se apresenta em círculos cada vez mais próximos do indivíduo. Consideram que não podemos criticar culturas de outra matriz civilizacional (ex: ocidentais não podem criticar orientais ou indígenas). Depois, consideram que não podemos criticar outros países, mesmo que da mesma matriz civilizacional (brasileiros não podem criticar, digamos, as touradas espanholas). Daí a coisa se estende para regiões do mesmo país, pessoas de outras classes sociais, outro sexo, outra geração até que, finalmente, talvez não tenhamos o direito de criticar ninguém além de nós mesmos, numa ditadura do acriticismo relativista politicamente correto.
O que tais pessoas não entendem é que é impossível viver sem fazer julgamentos, emitir opiniões. Fazemos isso o tempo todo, e não há nada de necessariamente errado nisso. Também não entendem que a cultura não é imutável, e que suas transformações muitas vezes se dão pela luta ativa por mudanças, não apenas por uma suposta evolução interior sem atropelos. Embora a cultura - como os indivíduos - só mude através da aceitação geral de novos paradigmas, diálogo e o convencimento são ferramentas necessárias no processo e que, aliás, são usadas por todos, o tempo todo.Alegar que a carne deve ser respeitada por ser cultural equivale a dizer que devemos respeitar atrocidades do passado e do presente.
Pena de morte, tortura, mutilação genital (masculina e feminina) são práticas existentes e socialmente aceitas ainda em muitas culturas. Isso sem mencionar questões como a opressão feminina, o racismo, a homofobia, que com variações, são provavelmente universais. Seria errado condená-las como bárbaras por acontecerem fora do meu círculo social?Por fim, o relativismo é uma atitude que se auto-anula: se eu me declaro incapaz de julgar qualquer opinião, como posso condenar atitudes que considerar absolutistas? Se todas as práticas e opiniões são relativas, como eu posso condenar pessoas que lutam contra determinadas atitudes que elas consideram injustas (criação de animais, tortura de seres humanos, apedrejamento de adúlteras)? Afinal, se tudo é relativo, também a relatividade é relativa.
Se devo respeitar toda e qualquer opinião, devo também respeitar a opinião de quem combate tais atrocidades. Então, o relativista se mostra, na melhor das hipóteses, incoerente.Se a questão é tão somente se manifestar contra atitudes e opiniões expressas em outro tempo e outras culturas, deveríamos nos questionar se as culturas são estanques, incapazes de dialogar entre si – o que é, obviamente, uma mentira. Nenhuma cultura vive isolada. Deveríamos igualmente nos questionar sobre a adoção seletiva de idéias estrangeiras: se o capitalismo, o nacionalismo e o socialismo são adequados para outras culturas, por que não o respeito aos direitos individuais?
Dor e sofrimento não são relativizáveis
É comodismo e covardia apelar para o relativismo diante de violações flagrantes dos direitos individuais básicos - liberdade, vida, integridade. Dor é dor, não é algo relativizável. Quem o faz, geralmente faz com pessoas distantes, no espaço e/ou no tempo, o que nos desobriga do exercício da empatia. É muito fácil fechar os olhos para um injustiça praticada longe de nós, sem sequer sentir um pouco de culpa pela nossa indiferença.Todos os seres humanos têm o mesmo interesse na sua dignidade e integridade, moral e física.
Quem acha que não devemos criticar pessoas que apedrejam adúlteras e mutilam mulheres deveria imaginar como seria conversar com essas mulheres para saber o que elas pensam de seu destino. Mesmo se alguma delas se manifestar conformada, ainda devemos defender o seu direito, e também de todas as outras. E se apenas uma se mostrar inconformada – o que é inevitável –, é porque aquela experiência cultural não pode ser absolutizada, universalizada. A crítica torna-se, então, não apenas possível, mas justa e necessária.
Ave hiper-alimentada, à força, para produzir "iguaria" francesa: foie gras







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